…Joga o paio, carne seca, toucinho no caldeirão. E vamos botar água no feijão! Como já cantou Chico Buarque, pelos quatro cantos do mundo, na música “Feijoada Completa”, toda quarta-feira – e nos sábados também – ela está lá: fumegante, saborosa, servida em cada cumbuquinha, que só de pensar a saliva prontamente já se faz presente. Há até quem considere a ocasião sagrada, com um ritual cheio de etapas: torresmo para abrir os “trabalhos”, vinagrete e a tenra couve verdinha no acompanhamento. Ah, sem esquecer a laranja-bahia e a generosa cumbuca de arroz. E, why not, afinal, ninguém é de ferro, o símbolo da brasilidade etílica no mundo: a caipirinha. Em outras palavras, tão certo como dois e dois são quatro, a feijoada está sempre no bar, no botequim, no restaurante mais próximo para saciar o apetite do brasileiro. Mas talvez você nunca tenha se perguntado, por que afinal de contas essa bendita iguaria passou a ser servida religiosamente às quartas-feiras no Brasil? Por quê? Então, pegue papel, caneta e prepare-se, porque a história é curiosa. A “culpa” disso tudo tem nome e sobrenome: os portugueses. Com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, essa história de ter um prato para cada dia da semana virou quase um decreto de vossa majestade. E como os gajos são mestres em produzir pratos que misturam feijão, carne de porco, um e outro elemento – como o cozido à portuguesa -, logo a feijuca ganhou os holofotes. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
A Chegada de Dom João VI à Bahia | Cândido Portinari (1903-1962). | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
De vontade real para “sacramento”, foi um pulo. E com o começo da industrialização, o costume da elite virou padrão nacional: com mais gente tendo que comer fora de casa, inicialmente em pensões e depois em restaurantes, o cardápio de “pratos do dia” começou a ser estabelecido – não só para deixar o consumidor mais acostumado, mas também para facilitar o ciclo de compras e evitar o desperdício. Assim, por exemplo, o virado à paulista virou o rei da segunda por reaproveitar o feijão da semana anterior. O peixe na sexta-feira é fruto da tradição católica. Já a feijoada de meio de semana se deve ao fato, dizem especialistas, de que a carne de porco resiste melhor ao tempo do que frango e bife. E olha que faz sentido, não faz? Mas enquanto você já está com água na boca para contar essa história no próximo almoço, já vale saber também que a feijoada está longe de ser uma refeição criada por escravos. Vários argumentos contradizem o mito. Primeiro: escravo nenhum tinha tempo de cozinhar o feijão pelo tempo necessário para aquele gosto especial. Segundo: comer carne no Brasil do século XIX, quando a feijoada virou paixão nacional, era coisa para rico. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Mas isso não quer dizer que aquela história que todo mundo aprendeu na escola sobre a feijoada aproveitar tudo e mais um pouco não tenha lá um temperinho de verdade. Nosso “prato nacional” é uma grande lição sobre como usar os recursos à máxima potência, evitando o desperdício. Até a ciência já embarcou nessa. O novo “reaproveitamento” responde pelo nome de transplante de rim de porcos geneticamente modificados, criados sob condições bastante específicas, para seres humanos, feito por médicos brasileiros nos Estados Unidos. E logo, logo, a técnica também estará por aqui. Quer, queiramos ou não, portanto, um dos maiores problemas da indústria da alimentação – afinal de contas, hoje precisa-se produzir comida para 10 bilhões de pessoas, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), está dado. E claramente as técnicas, o mercado, o ecossistema sociopolítico-econômico- Trocando em miúdos, existe um problema evidente de distribuição, é importante dizer, mas também um problema de desperdício: ainda de acordo com as Nações Unidas, 30% da comida produzida no mundo – mais de 1,3 bilhão de toneladas por ano! – se perde ou se desperdiça. Isso não faz só com que a comida não chegue até o prato de todas as pessoas, mas também que ela se torne mais cara. E atuar para reduzir o desperdício é, portanto, uma das formas mais importantes de garantir a segurança alimentar. Pois bem. Essa é uma das raízes da Raízs, foodtech fundada em 2016 e que recebeu investimento da KPTL em 2023. Parte da sacada da empresa é eliminar intermediários no processo de distribuição da comida: em vez de passar por distribuidores e varejistas, os alimentos da Raízs vão direto de pequenos agricultores para a empresa, e dela para a casa dos consumidores, seja em compras avulsas ou cestas de assinatura. Outro ponto importante, claro, é a tecnologia: da inteligência artificial capaz de prever a demanda dos consumidores e orientar quem trabalha no campo às múltiplas integrações e algoritmos nos centros de distribuição, encurtando caminhos e preservando a comida por mais tempo. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Centro de distribuição da Raízs (Foto: Divulgação). | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
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Organizar melhor a produção e distribuição de comida é também pensar no melhor uso da terra, diminuindo o impacto ao planeta. A Raízs faz isso de maneira quase ancestral, respeitando a sazonalidade dos alimentos. “Não dá pra querer morango em dezembro sem usar agroquímico, sem gerar impacto no solo”, lembra o executivo. Sustentabilidade também é uma preocupação – e hoje gastamos mais energia para produzir alimentos do que recebemos deles, como bem lembra Jorge Meza, representante da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, na sigla em inglês) no Brasil, na entrevista a seguir (leia logo abaixo!). Mitigar os impactos dessa produção, portanto, é tão importante quanto direcioná-la da maneira mais estratégica. E é aí que entram iniciativas como a da CHP Brasil, que ajuda toda sorte de empresas geradoras de resíduos a transformá-los em biogás – do bagaço da cana que sobra na produção de açúcar aos dejetos da pecuária. E até mesmo do porco que virou feijoada que você comeu na quarta. Nada se perde dele. Sem contar o lixo de aterros sanitários e esgoto. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Fundadores da CHP Brasil (Foto: Divulgação). | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
“Uma fazenda com 6 mil cabeças de porcos, por exemplo, pode gerar em média energia equivalente a cerca de 500 KWh, dependendo do tipo de criação”, explica Fábio França, sócio-fundador da empresa carioca, também investida pela KPTL. Além de fabricar os biogeradores, capazes de refinar o biogás, a CHP também implementa projetos completos com biodigestores, contribuindo não só para a sustentabilidade de diferentes setores, mas também a geração distribuída e a segurança energética – ter uma “pequena usina” é uma forma de muitas propriedades rurais garantirem que terão energia mesmo quando há falhas na rede. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
(Isso pra não falar que os resíduos da geração de biogás também podem ser reaproveitados como adubo, numa excelente reafirmação da velha máxima do químico francês Lavoisier: “na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Assim, quando você for sentar na mesa para comer sua feijoada de toda quarta-feira, ou de sábado, vale pensar em todo o caminho que a couve, a linguiça e o torresminho percorreram para chegar no seu prato. E tal como a laranja serve para quebrar a gordura da refeição, vale pensar na inovação (e em como é importante incentivá-la) para reduzir o impacto do nosso querido prato nacional. O planeta agradece ou says thank you! | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
“A good product is the one that makes you think why the hell hasn’t anyone done this before.” (Autor desconhecido) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
3 perguntas para…Jorge Alberto Meza RobayoRepresentante da FAO no Brasil. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
1) Hoje, vemos muitas pessoas adotando novos hábitos de consumo de alimentos em prol de uma alimentação mais sustentável, que cause menor impacto no planeta – como a redução do consumo de carne vermelha, por exemplo. A despeito de ser uma escolha individual, este é um movimento que pode gerar, de maneira coletiva, reduções significativas na pegada de carbono causada pela alimentação humana? | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Em termos estatísticos, estima-se que os sistemas agroalimentares produzem entre 21% e 37% do total das emissões globais, incluindo toda a cadeia, da produção até o tratamento de resíduos. O setor agrícola gera emissões de gases de efeito estufa, mas também há um potencial de mitigação dessas atividades, incluindo o sequestro de carbono do solo e um melhor ordenamento do território. Em relação ao consumidor, é possível observar que ele caminha para uma posição mais exigente, mas com ritmos diferentes. Nos últimos 60 anos, a população mundial triplicou, e o consumo de carnes aumentou 5 vezes no mesmo período. Há consumidores que têm pouca ou nenhuma preocupação com a origem ou o processo de produção dos alimentos, levando apenas em conta características e sabor. No entanto, há sinais claros de aumento do perfil de consumidor que quer saber mais sobre o processo produtivo do que consome e, aos poucos, vai incorporando preocupações ambientais e sociais ao conceito de “qualidade do produto”. Há até quem incorpora, dentro do conceito de qualidade, a forma como os animais viveram e morreram para nos alimentar. O sistema alimentar se move para servir o consumidor – e não necessariamente o produtor. Trata-se de um processo muito complexo e em permanente transição. Não sabemos quando se consolidará um grande mercado global desses novos consumidores, pois as diferenças socioeconômicas, as diferenças entre quem tem e quem pode escolher o que consome, são grandes em relação a quem não pode fazê-lo. No entanto, há sim uma tendência que não podemos ignorar. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
2) Combater a fome e cuidar do meio ambiente são dois dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU para 2030. Na indústria e no mercado financeiro, porém, há quem afirme que seja difícil – ou impossível – conciliar segurança alimentar com sustentabilidade. O que o senhor acha desse pensamento? Como é possível avançar nessas duas pautas? | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
É importante entender que todos os organismos vivos são, individualmente, neutros em carbono: retiram o carbono que precisam do ambiente, o incorporam em suas estruturas, liberam o excesso como resíduo e acabam liberando-o totalmente quando morrem. Isso inclui os seres humanos, animais e plantas. Dessa forma, em princípio, se contássemos apenas o carbono individualmente utilizado e liberado pelos seres vivos, não teríamos os problemas que temos hoje. A diferença está no que usamos para produzir alimentos: para operar sistemas agroalimentares, usamos tanto insumo e energia que os resíduos que produzimos acabam poluindo o ar, o solo e a água. Em princípio, colocamos mais energia no sistema do que obtemos dos alimentos – e o saldo negativo é a “poluição”. Não existem sistemas 100% eficientes. Além de reduzir as emissões de carbono, é possível reduzir significativamente os impactos da agricultura na atmosfera, no solo, na água e na biodiversidade – algo que a FAO apoia por meio de uma série de políticas. A indústria pode colaborar, garantindo que os insumos que utiliza em seu sistema produtivo venham de fontes com o menor impacto possível e/ou não gerem desmatamento de florestas naturais, por exemplo. O sistema financeiro tem que evitar colocar seus recursos em projetos que não considerem a redução do impacto ambiental e que não considerem as medidas de mitigação e compensação necessárias. A responsabilidade é de todos. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
3) Como a indústria de tecnologia e de inovação já contribui ou pode contribuir para auxiliar nesses objetivos, seja na preservação do meio ambiente, na construção de segurança alimentar global ou na construção de uma agropecuária mais sustentável? | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Ao pensar no sistema agroalimentar, devemos considerar todo o sistema – desde pesquisa, produção de sementes e insumos, cultivo e colheita, transporte, comercialização primária e secundária, e até mesmo o preparo dos alimentos para consumo, o próprio consumo, bem como o tratamento e destinação final dos resíduos. É um sistema tão amplo que, em termos econômicos e de criação de empregos, fica apenas atrás do sistema energético mundial. De fato, a ciência e a inovação contribuem e se tornam um poderoso motor para transformar os sistemas agroalimentares e acabar com a fome e a má nutrição. Há avanços hoje em campos como biotecnologia, técnicas nucleares, ferramentas digitais, nanotecnologia, big data, ciência de dados, inteligência artificial e aprendizado de máquina. Eles têm de ser acompanhados de vontade política, instituições fortes, quadros regulamentares favoráveis e boa governação. É igualmente importante continuar a promover parcerias público-privadas em investigação e desenvolvimento. Um dos desafios para os países é a lacuna entre ciência, inovação e tecnologias existentes e sua acessibilidade e adoção em nível local, especialmente em países de baixa e média renda ou entre pequenos produtores. Mais recentemente, a exclusão digital tornou-se uma grande preocupação para muitos países. Um desafio fundamental para a ciência e a inovação nos sistemas agroalimentares é a importância estratégica de responder às necessidades dos diferentes contextos locais, incluindo pequenos produtores e agricultores familiares. Há falta de investimento em sistemas de inovação agroalimentar a nível nacional, o que é crucial para adaptar as inovações aos contextos locais. |