Conoas

O Dia Depois do Amanhã

A imagem é desoladora. Devastadora mesmo. Água por todos os lados, casas submersas, prédios atingidos, muitas vezes, até o terceiro pavimento, ruas tão alagadas que não se dissocia o que é rio e o que é asfalto e um sentimento de impotência que assola o semblante não só de quem viveu a tragédia das chuvas no Estado do Rio Grande do Sul, mas também de quem se importa com o próximo.

São cenas que, infelizmente, não foram fabricadas em estúdio de cinema algum de Hollywood, em Los Angeles, nos Estados Unidos. E não pertencem ao filme de grande bilheteria “O Dia Depois do Amanhã”. Lamentavelmente, é só a natureza externando o seu descontentamento com a ação do homem em direção à ela.

Em outras palavras, a mudança climática não é comercial de margarina no café da manhã. Não é brincadeira ou interpretação. Não é algo que se possa deixar para lá, fingir que não existe ou que se está livre dela. É real, palpável e materializável.

Nenhum país no Planeta Terra pode bater no peito e dizer que está a salvo. A mudança do clima não respeita fronteiras geográficas, dá de ombros para ideologia política e sequer está preocupada se o modelo econômico é keynesiano ou marxisista.

A mudança climática tem mil caras. E trabalha com os cinco sentidos do homem: olfato, visão, audição, paladar e tato. Nem sempre de maneira clara, devemos dizer.

Por exemplo, em alguns momentos, ela é invisível aos olhos, mas se cristaliza em um calor intenso, tão intenso que é capaz de causar insolação, secando o paladar no melhor estilo clima desértico, e levando pessoas a óbito como no meio-oeste norte-americano ou na Grécia neste verão de 2024.

Já quando lida com o olfato, emerge num cheiro de chuva na terra –  a terra molhada -, mas que logo se dissipa dada a absurda quantidade de água que cai no solo.

A mudança climática também aguça a audição a partir das tempestades torrenciais ou os ventos gélidos de uma nevasca, causando temor. E é tátil, porque todas as percepções anteriores são bem palpáveis.

Mas como reagir a essas catástrofes naturais? A resposta é: informação. Não uma qualquer. Não àquela pesquisada no Google – sorry, Google! Aqui, falamos de informação tratada, que emerge a partir de dados, imagens, insights, pesquisa de campo, entre outros.

Quem conhece bem essa receita é o pessoal da Fractal Engenharia e Sistemas. Por meio de uma série de bancos de dados públicos, que incluem informações de radar, satélites, sensores meteorológicos e atmosféricos, além das coletadas no terreno de trabalho, a empresa consegue montar uma plataforma capaz de gerar uma previsão do comportamento da água.

É o tipo de análise que quase toda indústria precisa: da agricultura e da pecuária à geração de energia por usinas hidrelétricas, passando por um punhado de indústrias. Porque o ciclo hidrológico afeta consideravelmente a economia brasileira.

Engenheiro ambiental e especializado em segurança de barragens, ele se dedicou por um tempo à academia. Mas decidiu empreender por ver que a informação produzida na universidade não chegava à população.

“O sistema funciona para que os técnicos e a Defesa Civil já tenham todas as informações num mapa, com alarmes e alertas definidos para mobilizar evacuações e ações de segurança, por exemplo”, diz Rocha.

O CEO da Fractal fala com experiência. Seu sistema foi importantíssimo nas cheias de outubro de 2023, no Estado de Santa Catarina. Apesar de ter mais de 130 municípios atingidos, o estado sofreu com prejuízos menores e infelizmente dois óbitos, porque a Defesa Civil conseguiu se mobilizar a tempo a partir das informações fornecidas pela Fractal.

Sala de monitoramento da Defesa Civil do Estado de Santa Catarina.

Vale lembrar ainda que a empresa consegue auxiliar não apenas em situações de enchentes, mas também quando há escassez de água. Como atualmente os brasileiros assistem estupefatos no Pantanal sul-matogrossense.

A falta desse insumo nem é preciso dizer. Mas vamos lá… Afeta sobremaneira inúmeras atividades econômicas como mineração, setor que está entre os principais clientes da empresa.

Agora, se a ausência de água for potável? Àquela prontinha para beber. Bom, aí a conversa é outra. Mais complexa.

Em situações de enchentes, como a do Rio Grande do Sul, ficou claro o tamanho do problema. Primeiro, porque um dos primeiros sistemas a serem afetados é justamente o de saneamento. Depois, porque ele colapsa. E daí, a demanda surge imediatamente, resolvida em boa medida pelo sentimento donatário da população.

Só que hoje, trocando em miúdos, diante do tamanho do estrago no estado gaúcho, uma palavra surge no horizonte: reconstrução. Mas qual será o modelo? Dá para aproveitar o anterior? Ou é possível reimaginar  sistemas melhores?

A Augen Engenharia acredita que sim. Que dá para imaginar coisa melhor.

No centro, Fabrício Santana, CEO da Augen.

Com sede no Estado do Rio Grande do Sul, a companhia pode ajudar muito nesse processo. Atuante no setor de saneamento, a empresa é dona de uma tecnologia modular que pode não só fazer medições em tempo real sobre a qualidade da água que está sendo oferecida nas redes públicas, como também automatizar muitas tarefas nesse setor.

Em uma combinação de software, hardware e conectividade, os produtos da empresa são instalados em poços artesianos e estações de tratamento de água, sendo capazes de coletar informações sobre nível de acidez (pH), temperatura, turbidez, fluidez e outros aspectos desse líquido tão precioso. Mais que isso: o sistema também pode fazer a correta dosagem de insumos como cloro, flúor ou coagulantes importantes para tratar a água.

“Nossas soluções trazem processos autônomos e redução de custos operacionais. Em vez do operador carregar galão de produto químico, o operador do sistema passa a ter um olhar mais técnico na gestão do processo”, explica Fabrício Santana, CEO da Augen. Segundo ele, a implementação dos produtos da empresa trazem até 30% de economia no custo unitário da água produzida.

Mais do que apenas economia, o sistema é rápido e fácil de ser implementado: em uma situação de emergência, ele consegue começar a tratar água em um poço artesiano até 24 horas depois da abertura do mesmo. E como se não fosse bastante, o sistema ainda vem munido de Inteligência Artificial (IA) própria, a Iris, que conversa com os operadores e auxilia em qualquer problema.

Claro que a água é apenas um dos primeiros passos na reconstrução da vida. Uma necessidade básica diante de uma miríade de desejos dos seres humanos, como bem ensinou Maslow e sua pirâmide. Já dizia o refrão: o show tem sempre que continuar – ou como canta Milton Nascimento, mesmo “com a roupa encharcada e a alma repleta de chão, todo artista tem de ir aonde o povo está”.

E é aí que entra o trabalho da Prosas, que nasceu para auxiliar na seleção, monitoramento e prestação de contas de projetos selecionados em editais de leis de incentivo – como a Lei Rouanet, a Lei de Incentivo ao Esporte ou os recursos disponíveis em fundos voltados a idosos ou crianças e adolescentes.

Com uma plataforma própria, a Prosas ajuda secretarias e empresas que tenham editais próprios a escolherem os trabalhos que merecem apoio, reunindo toda a documentação necessária. Além de editais públicos, a startup também auxilia empresas que queiram escolher de maneira reservada seus apoios com um banco de projetos incentivados (BIP), já previamente aprovados pelos órgãos públicos a captar recursos.

Banco de projetos com a curadoria da Prosas.

Normalmente, a Prosas cobra das empresas que desejam fazer esse tipo de captação. Para ajudar o Rio Grande do Sul, porém, a companhia abriu de maneira pública o banco de projetos que já receberam aval para captar recursos via leis de incentivo.

Reconstruir e reimaginar o futuro de um dos estados mais importantes, criativos e inovadores do Brasil vai levar tempo. Mas todos nós podemos fazer a nossa parte por um futuro melhor. Porque a expressão “será que vai chover hoje?” nunca foi tão importante e atual. E nesse “chover” cabe muita coisa, inclusive o sentimento de amor que se espalhou pelo Brasil em direção ao Estado do Rio Grande do Sul. Nesse caso, não foi uma chuvinha. Foi uma tempestade de amor, uma tempestade do bem.

“We may encounter many defeats but we must not be defeated.”

Maya Angelou

3 perguntas para…

1) O desastre climático no RS pegou muita gente de surpresa e causou impactos que vão demorar algum tempo para serem compreendidos. De que maneira a tecnologia está auxiliando no entendimento no cenário e também nas respostas para a subsistência de pessoas, empresas e entidades no curto prazo?

Pedro Freitas Valério: Sem sombra de dúvida, o desastre tomou uma proporção muito acima de qualquer expectativa, seja no alcance, na duração e obviamente na compreensão de seus desdobramentos. Enquanto cidadãos empreendedores gaúchos, vamos ter essa ferida aberta por muito tempo. O exercício que a gente tem trabalhado no curto prazo, em termos de respostas, passa sob a ótica de tecnologia. No próprio Caldeira, uma série de iniciativas estão sendo trabalhadas em torno de IoT e outras perspectivas, para endereçar a capacidade de antecipação e previsibilidade de eventos dessa natureza. Mas o exercício mais importante é o de criar convergências, ampliando as colaborações dos projetos, iniciativas e atores envolvidos dentro das respostas.. Estamos afinando e atuando tanto com a iniciativa privada quanto com o poder público para mitigar e endereçar esses riscos, de como o Caldeira e o Quarto Distrito, podem sair melhor desse desafio que estamos enfrentando.

Leandro Pompermaier: Desde o início do desastre no Rio Grande do Sul, houve um movimento do uso de tecnologia, especialmente dentro de ambientes de inovação, como o Tecnopuc, onde empreendedores começaram a se reunir e fazer um movimento para mapear os abrigos e as necessidades das famílias nas áreas que foram atingidas, seja em Porto Alegre ou no Estado como um todo. Depois que a situação começou a se “estabilizar”, depois que a enchente passou em Porto Alegre e o rio baixou no interior do Estado, os dados e aplicativos desenvolvidos foram encaminhados para o poder público, para que pudessem ser usados de forma assertiva em decisões de investimentos da recuperação do Estado como um todo. Nesse caso, a tecnologia foi crucial já no primeiro momento para entender a grandeza do estrago. Agora, ela está sendo muito utilizada para mapear em que pontos são necessárias ações rápidas, para ter uma economia voltando a uma possível normalidade. Vai ser difícil e demorado, mas entender quem precisa, quanto precisa e como precisa será essencial agora. A tecnologia vai auxiliar governos, sociedade civil e até os voluntários como um todo para que possamos encaminhar as forças no momento correto para as pessoas corretas.

2) Mais do que apenas falar da reconstrução do Rio Grande do Sul, é importante reimaginar um novo RS a partir do que aconteceu. De que maneira a inovação pode auxiliar nesse processo de médio-longo prazo?

Pedro Freitas Valério: Reconstrução é uma palavra que usamos pouco. Falamos muito sobre regeneração, que passa justamente pela ótica de, enquanto Estado e cidade, sair melhor da crise, usando uma mentalidade anti frágil – aquilo que, depois de um estressor de alta intensidade como o que a gente viveu, faz disso para melhorar e crescer no médio-longo prazo. Dentro da comunidade do Caldeira, vemos um impacto financeiro de cerca de R$ 500 milhões dentre as empresas do instituto, mas também temos uma série de empresas que não foram impactadas. Ao falar de estratégia de resiliência, um olhar apurado sobre a nossa matriz econômica é também muito estratégico. Empresas ligadas a tecnologia, serviços em nuvem, IA e outras frentes de alguma maneira passaram bem por esse desafio climático justamente porque seus negócios não estão ancorados em premissas que a água pode impactar. Isso é uma lente: olhar sobre essa matriz econômica e quais setores que a gente poderia apontar pro futuro apontando a competitividade do nosso Estado. Além disso, falamos ainda sobre desenvolvimento de um distrito de inovação, com uma série de tecnologias que estão sendo trabalhadas, que dizem respeito a iniciativas como sensores, tecnologia de conectividade e videomonitoramento.  Estamos estudando estruturas de engenharia, como praças de contenção, a revisão de galerias, mas também o uso de novas tecnologias para mitigar eventos futuros.

Leandro Pompermaier: Reimaginar um novo Rio Grande do Sul requer uma abordagem integrada e inovadora. A inovação pode contribuir significativamente em várias frentes. Por exemplo, na construção civil, novas tecnologias e materiais sustentáveis podem ser adotados para tornar as infraestruturas mais resilientes a eventos climáticos extremos. Além disso, o desenvolvimento de cidades inteligentes, com sistemas de monitoramento e resposta rápidos, pode ajudar a mitigar os impactos de futuros desastres. No campo agrícola, técnicas de agricultura de precisão e o uso de inteligência artificial podem aumentar a resiliência das plantações às variações climáticas. A educação e a conscientização ambiental também são pilares fundamentais para a construção de uma sociedade mais preparada e resiliente. Entre outras ações de inovação e tecnologia que podem auxiliar governos na condução das ações para a reconstrução do RS.

3) Muitas cidades do interior do Estado não sofreram pela primeira vez com as enchentes em um intervalo de tempo recente. Além disso, é importante ressaltar que o cenário de mudanças climáticas só tende a se intensificar num futuro próximo. Como a inovação e a inteligência podem ajudar a desenvolver soluções para evitar que novas tragédias se repitam?

Pedro Freitas Valério: Existem muitos casos espalhados pelo mundo de locais que têm enfrentado desafios similares ou parecidos, fazendo uso da tecnologia e, naturalmente, pensando num planejamento urbano para o futuro. Amsterdã (na Holanda), por exemplo, está há 150 anos embaixo d’água e passou por desafios enormes, mas sempre com o uso de tecnologias e ferramentas que contribuem para mitigar esses desafios. O que a gente de alguma maneira acredita no Caldeira é que trazer esses exemplos e atores dessas cidades, para participar ativamente das construções para o Rio Grande do Sul e para as cidades gaúchas é um exercício de governança. É um exercício da capacidade de colaboração e de convergências envolvendo a iniciativa privada e o poder público em todas as esferas. É também um exercício de cidadania sobre a ótica da sociedade civil, qual é a ambição que a gente tem para construir para o futuro. Naturalmente, temos que estabelecer as divergências do que é um evento climático da natureza e do porte do que aconteceu em maio e a resolução de problemas que dificultam a criação de valor em áreas importantes do Rio Grande do Sul. O exercício aqui é de governança, para que a gente possa fazer a proposição, a fiscalização, o acompanhamento e o desenvolvimento desses projetos de forma prioritária.

Leandro Pompermaier: Para evitar futuras tragédias, a inovação e a inteligência são indispensáveis. A implementação de sistemas avançados de alerta precoce, utilizando sensores e redes de comunicação, pode proporcionar avisos mais rápidos e precisos, permitindo uma evacuação segura e em tempo hábil. Soluções baseadas em inteligência artificial podem analisar grandes volumes de dados para prever padrões climáticos e identificar áreas de risco. A infraestrutura verde, como parques e áreas de alagamento controlado, pode ser projetada para absorver o excesso de água das chuvas, reduzindo o impacto das enchentes. Além disso, é essencial promover a colaboração entre governo, setor privado e a comunidade científica para desenvolver políticas públicas eficazes e soluções tecnológicas adaptadas às necessidades locais.