Silenciosa revolução das Govtechs

A silenciosa revolução das GovTechs

Imagine uma noite agitada de sono. Em meio ao ato de virar à direita, virar à esquerda, seu inconsciente mergulha em um momento like a movie. Passaporte, RG, CNH sumiram. Comprovante de título de eleitor, então, esquece. Alistamento militar?!? 😳! E você precisa de todos esses documentos, e mais alguns, para comprar a casa ideal ou aquela máquina que acelera de 0 a 100 Km/hora em 7 segundos. Pensou? Pois, então…

Agora, vamos tirar a segunda via disso tudo aí de cima. Que lhe parece?

É justamente neste mágico momento que a porta do caos tem tudo para se abrir. Porque é senha, é fila, é outra fila, é guia de banco, é comprovante, xerox – quando não autenticada – até chegar ao nirvana. Qual seja? Ser atendido.

Mas no guichê talvez você encontre alguém de mau humor. E sem erguer sequer as sobrancelhas lhe pergunta: Formulário? Trouxe?!?

É nesta exata fração de segundo que o pavor se instala. As mãos passam a ficar molhadas involuntariamente. Gotas de suor tomam conta da testa franzida. E o frio na barriga anuncia: bem-vindo ao maravilhoso mundo da burocracia.

Mas calma… Foi só um pequeno pesadelo. Uma amostra grátis do Custo Brasil.

Nota da Redação: Alô, governantes, especialmente prefeitos eleitos, concessionárias, grandes corporações, contamos com vocês para que isso não passe de um sonho de verão.

Afinal, hoje temos GovTechs, as startups dispostas a revolucionar o atendimento ao cidadão dos diversos entes públicos do País. E vamos desfazer, no glossário abaixo, qualquer mal entendido sobre a nomenclatura.

Glossário: GovTech não atende somente governos. Seja municipal, do estado ou federal. Atende também. Como também está à disposição de concessionárias de serviços públicos, empresas privadas que lidam com grandes contingentes. Em outras palavras, serviços públicos de massa. E tanto faz se são companhias privadas, de governos ou de capital misto.

Feito o esclarecimento. Sigamos.

As GovTechs, de fato, vem promovendo uma revolução silenciosa na gestão pública brasileira, ajudando a desburocratizar órgãos governamentais, reforçando a transparência, controle de recursos e trazendo eficiência. Quer um exemplo? Portal de relacionamento cidadão-prefeitura. Quer outro? Gestão de projetos socioculturais. Mais um? Mais um… Gestão de licitações e vendas para governo.

Mulher entrando em aplicativo (imagem ilustrativa).

Ok, sabemos que na hora recorrer aos serviços públicos muitas vezes é difícil, nem sempre a gente consegue resolver as coisas pela internet ou no aplicativo.

Mas vejamos as coisas pelo lado positivo, my dearest friend. Há avanços importantes em marcha. Duvida? Então, pegue papel e lápis… Tá bom, tá bom, pode sacar o seu eletrônico preferido e vamos lá: você sabia que o Brasil é o segundo país com a mais alta maturidade em serviços públicos digitais no mundo, atrás apenas da Coreia do Sul? É! Pois é!

Segundo o Relatório GovTech Maturity Index 2022, divulgado pelo Banco Mundial em 2024 e que avalia o estágio de transformação digital dos serviços públicos em 198 países, o Brasil teve o maior avanço entre todas as nações analisadas, subindo da quinta para a segunda posição.

Ranking de Governos Digitais. (Fonte: Relatório GovTech Maturity Index 2022)

Nesse estudo, o Banco Mundial leva em consideração três fatores: a atuação de cada país na questão da transformação digital, serviços públicos centrados nos cidadãos e eficiência dos sistemas governamentais. Para o Ministério da Economia brasileiro, o desempenho do País no ranking se deve, além da existência de serviços como certificado digital de vacinação e carteiras digitais de trânsito e trabalho, a vários outros sistemas que podem ser acessados pela internet. É o caso, por exemplo, do Sistema de Seleção Unificada (SISU), Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Gostou? Tem mais. Mais detalhes.

O número de startups brasileiras de GovTech cresceu seis vezes em quatro anos! 6 VEZES em 4 ANOS.

Segundo o Mapa GovTech – Brasil 2024, desenvolvido pelo hub de inovação BrazilLab e Oracle, com base em dados de 2022 e 2023, a maioria das iniciativas está relacionada ao Poder Executivo (55,92%), seguida pelo Judiciário (33,34%) e, por último, o Legislativo (3,85%). O estudo identificou 475 startups e Pequenas e Médias Empresas (PMEs), com atuação no segmento de gestão pública no Brasil, além de 338 iniciativas de inovação do Poder Público.

Quantidade de startups, PMEs e iniciativa GovTech. (Imagem: Retirada do Mapa Govtech – Brasil 2024)

O trabalho destaca “o enorme potencial desse mercado” e a crescente digitalização dos serviços públicos, acelerada pela pandemia de Covid-19. E tudo isso tem chamado a atenção dos investidores, que “acreditam que a rentabilidade do ecossistema GovTech possa ser superior a de outros tipos de investimentos”. De olho nessas oportunidades, já existem fundos voltados especificamente para esse segmento, “fazendo com que a falta de investimento não seja mais uma das principais barreiras enfrentadas pelas startups GovTechs”, argumenta o estudo.

O levantamento do Banco Mundial ainda destaca que, “em uma iniciativa pioneira, a KPTL e a Cedro Capital, duas gestoras de Venture Capital, lançaram em 2021 o Fundo GovTech. Esse é o primeiro fundo de investimentos da América Latina totalmente dedicado ao segmento govtech e o segundo do mundo, depois apenas do americano GovTech Fund”. Chique, não?!? Chiquérrimo!!!

Maior fundo da América Latina voltado a startups com soluções para o setor público, essa iniciativa captou mais de R$ 50 milhões e tem entre seus cotistas a Positivo Tecnologia, Grupo Multi, VIPH, Kimak e agências de fomento como AgeRio, Badesul e Goiás Fomento. E teve sua primeira saída em outubro deste ano, com a venda da Augen Engenharia para a Biosolvit.

A tese do Fundo GovTech cobre dez verticais — saúde, educação, segurança, habitação e urbanismo, infraestrutura e mobilidade, saneamento, meio ambiente e defesa civil, smart cities, legal e regulatório, cidadania e gestão pública. E as rodadas mais recentes incluíram aportes na Prosas, Colab e StartGi.

Solução, my name

Fundada em 2015, a Prosas é uma plataforma especializada na seleção e monitoramento de projetos socioculturais. Por meio desse sistema, empresas e governos que patrocinam projetos podem organizar todo o processo em um só lugar, conferindo transparência e agilidade à escolha desses planos, além de acompanhar a execução operacional, financeira e os impactos alcançados.

Com sede em Belo Horizonte (MG) e liderada por Thiago Alvim, a startup já gerenciou mais de 1,5 mil editais, recebendo cerca de 185 mil pedidos de apoio ao longo de sua trajetória. O aporte do Fundo GovTech vem sendo usado para aprofundar a oferta de soluções e acelerar a estratégia comercial.

Com o passar do tempo, a startup percebeu que apenas os editais não seriam suficientes para atender a todas as demandas. Assim, nasceu o Banco de Incentivados Prosa (BIP), um banco dos projetos já aprovados em leis de incentivos. Atualmente, mais de 2,8 mil iniciativas aptas a captar recursos estão disponíveis na plataforma.

 

A evolução do negócio mostrou ainda que a gestão pública também vive os mesmos problemas e merecia atenção. “Por isso, a partir de 2020, viramos o foco da nossa estratégia comercial para as organizações públicas”, afirma Alvim, destacando como clientes dessa área a Fundação Nacional das Artes, Fundação Palmares, Governo do Mato Grosso do Sul e secretarias de cultura do Estado do Maranhão e de cidades como Palmas e Manaus.

A Colab, por sua vez, nasceu para conectar os cidadãos às prefeituras com objetivo de solucionar problemas das cidades. Quer pagar o IPTU? Fazer matrícula na creche? Consultar a carteirinha de vacinação? Tudo isso pode ser feito por meio do aplicativo ou chatbot da startup. E não é só isso: a empresa também ajuda governos a organizar dados, melhorar relatórios e até promover consultas populares.

Um dos grandes casos de sucesso da Colab é com a prefeitura de Santo André, na Grande São Paulo (SP). A empresa desenvolveu para o município uma plataforma multicanal de digitalização de cerca de 500 serviços públicos municipais, processos internos e comunicação entre a administração e a população. Pelo projeto, os moradores de Santo André contam agora com um portal de serviços, um aplicativo e um canal de WhatsApp para resolver questões como matrícula em creches, agendamento de vacinação, emissão de segunda via de IPTU e até mesmo emissão de cartão de estacionamento para idosos.

Plataforma da Colab. (Imagem: Retirada de www.colab.com.br)

Com Lupa

Além de resolver uma série de situações do dia a dia das pessoas nas cidades, as GovTechs também podem atuar na área de compras públicas – o que, aliás, é muito mais que bem-vindo, é necessário!

O Portal de Compras Públicas foi criado justamente para atuar nessa questão. A startup desenvolveu um marketplace de licitações que une prefeituras e iniciativa privada. Trocando em miúdos, ela funciona como um tinder das compras públicas, promovendo match entre prefeituras e fornecedores. Fundada em 2016 pelos irmãos Leonardo e Bruno Ladeira, a empresa calcula já ter proporcionado uma economia de R$ 20 bilhões para os órgãos públicos em processos licitatórios.

Por meio da plataforma, 180 colaboradores atendem a 4,2 mil compradores, entre eles três mil municípios, ou seja, 60% das cidades, envolvendo um total 550 mil fornecedores cadastrados, que participam de cerca de 11,5 mil oportunidades de negócios todos os dias na plataforma e movimentam cerca de R$ 390 milhões diariamente. Mais de R$ 100 bilhões por ano. Pelo modelo de negócio, a plataforma é gratuita para os órgãos públicos, mas as empresas, que utilizam o serviço, pagam uma assinatura de R$ 149 por mês.

“Isso, aliado a um suporte multicanal capacitado, permite reduzir prazos, minimizar erros oriundos da capacitação insuficiente dos atores – presente e real nos dois lados desse balcão – e, em última instância, simplificar o esforço associado em prover produtos e serviços essenciais à parcela da população nacional que representamos”.

Para ele, a tecnologia tem um papel essencial ao dar transparência às ações dos órgãos públicos. Essa dificuldade, inclusive, costuma levar a população a uma percepção, muitas vezes injustificada, de que está sendo manipulada, diz Ladeira. Por isso é importante “tratar mecânicas de dados abertos, permitir que terceiros tenham acesso a dados brutos, sejam de orçamento, execução orçamentária, contratos ou mesmo de estoques e almoxarifados, entre outros, viabilizando assim o acesso à população para uma análise crítica externa”.

Entre os casos de sucesso do Portal de Compras Públicas está Porto Alegre (RS), numa parceria que vem desde 2016. Maior compradora dentro da plataforma, a prefeitura da capital gaúcha realiza 600 pregões por ano, com uma economia média de 22% nos preços obtidos nas transações.

Outra que vai muito bem e obrigado no universo de compras públicas é a StartGI. Fundada em São Paulo (SP), em 2015, a empresa investida pelo Fundo GovTech é  especializada em soluções para licitações, facilitando a complexa jornada de vender para o setor público.

Ok, mas como ela faz isso? A StartGi tem uma gama de soluções, que vai desde o iGanhei, uma plataforma de licitações destinada principalmente a empresas que participam de grande número de editais, passando pelo iDocumentei, que lida com a gestão de documentos, até o iPesquisei, para empresas que querem conhecer mais a fundo um determinado mercado de compras públicas.

Ainda falta

Apesar dos avanços da transformação digital de serviços públicos no País, essa evolução é puxada principalmente pela esfera federal, que promoveu esse processo com base principalmente em programas próprios. Já para replicar os avanços na esfera municipal as GovTechs são fundamentais.

Dá pra imaginar o motivo, né? São 5.570 municípios no país, com realidades muito diferentes entre si. Conforme explica Juliana Sakai, diretora-executiva da Transparência Brasil, ONG especializada no monitoramento do setor público, grande parte dos municípios têm uma estrutura relativamente modesta, com orçamentos limitados e servidores que recebem menos que os de nível estadual e federal. “Os funcionários públicos municipais que são responsáveis por transparência podem acumular diversas outras funções, limitando sua capacidade de atuar”, afirma.

A partir desses dados públicos, não só o governo, mas a própria sociedade civil pode criar visualizações de dados e realizar análises, levantamentos e reportagens que possam comparar custos de licitações ao longo dos anos. “Mas, em geral, muitos municípios apenas compartilham documentos sobre contratações, e não o dado aberto e organizado que possibilita essas análises”, afirma Juliana (leia mais na seção 3 Perguntas).

Como se vê, há muitos avanços, mas também desafios. E as GovTechs estão aí para dar aquele empurrãozinho na digitalização geral da gestão pública, em todos os níveis, mas principalmente nos serviços municipais, conferindo transparência e eficiência. E, olhando para o futuro, uma coisa é certa: as startups desse setor não são um modismo. Elas vieram para ficar e transformar o jeito como os governos interagem com os cidadãos. Seja pelo chatbot que resolve pendências pelo celular ou por meio de plataformas que democratizam o acesso a recursos sociais, o fato é que a inovação está avançando na gestão pública, o que coloca o Brasil como um dos protagonistas do setor. Em outras palavras, a gestão pública do futuro já começou – e está só a um clique de distância.

“O melhor governo é aquele em que há o menor número de homens inúteis.”

Voltaire

3 perguntas para…

Juliana Sakai

Diretora-executiva da ONG de combate à corrupção Transparência Brasil, formada em relações internacionais pela Universidade de São Paulo e mestre em ciência política pela Leuphana Universität, em Lüneburg (Alemanha).

(Foto: Divulgação)

1) Quais são os principais desafios que os municípios brasileiros enfrentam na implementação de práticas de gestão pública mais eficazes e transparentes? O que precisa ser melhorado?

O serviço público municipal conta com menos estrutura que os níveis estaduais e federal, ou seja, tem orçamento público limitado e seus funcionários públicos recebem menos que os servidores federais. Assim, funcionários públicos municipais que são responsáveis pela transparência podem acumular diversas outras funções, limitando sua capacidade de atuar. Ainda assim, o governo federal disponibiliza uma série de recursos tecnológicos que o município pode usar, sem ter de construir ou contratar algum fornecedor para isso. É o caso por exemplo do Sistema Eletrônico de Informações ao Cidadão (e-SIC).

2) Aparentemente, as plataformas digitais de informação disponíveis para a sociedade monitorar a administração pública no nível federal (.gov) estão mais desenvolvidas, se comparadas aos municípios, que têm realidades muito distintas. Essa percepção está correta? Como a tecnologia pode ser usada para conferir maior controle da sociedade sobre a gestão municipal?

O maior gargalo entre o governo federal e o municipal não é a tecnologia em si, porque portais de dados não são tão difíceis de serem implementados. O problema está na produção de dados de qualidade. Se um governo tem capacidade de produzir bons dados, digamos de contratações públicas, basta um repositório público para disponibilizar tabelas para cidadãos que sabem usar planilhas. A partir desses dados públicos, não só o governo, mas a própria sociedade civil pode criar visualizações de dados e realizar análises, levantamentos e reportagens que possam comparar custos de licitações ao longo dos anos. Mas, em geral, muitos municípios apenas compartilham documentos sobre contratações, e não o dado aberto e organizado que possibilitam essas análises.

3) Você e a Transparência Brasil têm participado das discussões sobre a regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil. Qual sua visão sobre o potencial e os riscos de usar Inteligência Artificial (IA) na gestão pública?

A tecnologia existe para servir as pessoas, e é com essa diretriz que o uso de IA e outras tecnologias devem acontecer. Há um grande potencial do uso de IA para acelerar alguns processos na gestão pública, como triagem de processos, análise de documentos etc. A Transparência Brasil mapeou diversas ferramentas no âmbito federal em 2020/2021 e apontou uma série de riscos no uso dessas ferramentas, que envolvem riscos à proteção de dados, à liberdade de expressão por meio de tecnologias de vigilância, riscos de racismo algorítmico, entre outros. Um dado alarmante era que apenas metade das ferramentas mapeadas tinha um indicador de acurácia, ou seja, em metade dos casos um servidor público estava se apoiando nos resultados de uma tecnologia para tomar decisões em políticas públicas, mas sem saber se a tecnologia funciona bem ou não. Por isso é fundamental que servidores públicos sejam bem treinados para interagir com sistemas de Inteligência Artificial de maneira crítica.