Abelhas

Lixo ou diamante: qual vale mais?

Quando pensamos em abelhas, as primeiras coisas que vêm à mente são o doce mel e a dolorosa picada. Se pensarmos mais um pouco, e lembrarmos das aulas da biologia do 8º ano, aceitamos que elas têm um papel para ajudar no ciclo das flores. 70% da polinização que transforma flores em frutos e sementes acontece pela ação das abelhas! Se não fossem as abelhas: adeus alimentos… o valor econômico da polinização no mundo é calculado em US$ 300-400 bilhões.

Nos Estados Unidos e na Europa, a maior fonte de receita dos apicultores (produtores de abelha) já não é a produção de mel. É o aluguel de abelhas para os agricultores! 100% da produção de amêndoas nos Estados Unidos, por exemplo, utiliza abelhas alugadas em seu ciclo de produção. O agricultor aluga abelhas de um apicultor (muitas vezes através de um “Uber de abelhas”). O apicultor envia um caminhão com centenas de colmeias, em caixas. Estas colmeias são espalhadas pela plantação e lá ficam por umas semanas. Todo mundo com aquelas roupas de astronauta, para se proteger das picadas.

Alguns assinam Netflix, outros abelhas. Definitivamente podemos dizer que estamos migrando para uma economia baseada em mensalidade. Qual será a próxima assinatura inusitada que nos aguarda?

Lixo ou diamante: qual vale mais?

Quando olhamos para os primórdios da humanidade e imaginamos como seria viver em um mundo sem garantia de água, comida e abrigo, notamos o quão avançado é o mundo contemporâneo. Mas não precisamos nem ir para o mundo antes de Cristo para notarmos um estilo de vida drasticamente diferente: basta voltarmos 30 anos para um mundo sem smartphones ou redes sociais. Muito pior do que ter que lutar pela vida todos os dias é dormir sem saber a última dança do TikTok ou cancelamento no Twitter. Enquanto isso, o mundo de um nobre europeu nascido em 1250 era basicamente o mesmo da sua mãe em 1220.

O intervalo de tempo para que o passado seja irreconhecível para os que vivem no presente parece diminuir cada vez mais. E continuamos vendo tecnologias com potencial para manter essa frase verdadeira: viagens espaciais, computadores quânticos, energia via fusão nuclear e web 3.0. Será que em 20 anos vamos olhar para os dias de hoje como olhamos para o mundo de 1990? Mesmo que a resposta seja sim, será que nossa tecnologia é de fato tão avançada assim?

Certamente alguns dos nossos leitores já ouviram falar da escala de Kardashev, que mensura o nível de desenvolvimento tecnológico de uma civilização a partir da sua habilidade em extrair energia. É uma escala exponencial, que contempla civilizações Tipo I, II e III. Uma civilização Tipo I consegue extrair toda a energia de seu planeta; uma Tipo II, de sua estrela; e uma Tipo III, de sua galáxia.

Ilustração de uma Esfera de Dyson, estrutura teorizada pela qual uma civilização Tipo II extrairia energia de estrelas

Nós gostaríamos de propor uma escala alternativa para a mensuração de nível tecnológico de uma civilização, com ambições passíveis de serem atingidas em uma escala temporal mais curta. Essa nova escala se basearia na habilidade de uma civilização reutilizar ou reciclar os subprodutos de sua economia. Em uma civilização Tipo III, a palavra “lixo” não teria mais sentido e deixaria de existir, já que a taxa de reutilização seria de 100%. Assim como na escala de Kardashev, hoje a humanidade mal seria uma civilização Tipo I.

Infelizmente, não vos deve causar espanto quando falamos que apenas 16% dos resíduos sólidos são reciclados no mundo, ou ainda que o Brasil recicla menos de 3% das quase 85 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos produzidas anualmente. Todavia, almejamos surpreendê-los com a história abaixo, que exemplifica como todo o “lixo” pode ter o potencial para ser reutilizado para os mais diversos fins.

Vamos começar pelo começo. A medicina faz uso de radioterapia (tratamento baseado em radiação ionizante) há mais de 100 anos, impulsionada pela descoberta dos raios-X em 1895. No seu início, o Rádio (que deu origem às palavras “radiação”, “radioatividade” e outras derivadas) era o elemento químico mais comumente utilizado, inclusive em tratamentos oncológicos. Todavia, nos anos 1950s, passou a ser substituído por outros elementos mais eficazes, como o Irídio-192 ou o Césio-137 (aquele mesmo do desastre de Goiânia em 1987). Desde então seu uso médico passou, cada vez mais, a ser destinado apenas para casos muito específicos. Enquanto isso, a medicina nuclear foi descobrindo utilidades de novos isótopos (lembra da aula de química?), e aprimorando a eficácia seus tratamentos.

(vale lembrar da nossa newsletter sobre a RPH para quem não teve a oportunidade de ler)

Ilustração da primeira máquina de Raios-X, operacional em 1902

Recentemente, alguns estudos sobre o isótopo Actínio-225 têm mostrado resultados promissores no tratamento do câncer de próstata metastático. Enquanto a taxa de sobrevivência para um paciente com câncer de próstata localizado é de praticamente 100% em um horizonte de 5 anos, para esse outro tipo específico de câncer é de apenas 30%. Fica evidente o impacto potencial dessa nova terapia, caso seus benefícios sejam comprovados.

O problema é que não há oferta suficiente de Actínio-225. Apesar de, em tese, estar disponível na natureza, há alguns problemas: o Actínio-225 é um produto do decaimento do Thálio-229, cuja meia vida é de quase 8 mil anos. Ou seja, a cada 8 mil anos, metade do Thálio-229 disponível se transformaria em Actínio-225. O Actínio-225, ao contrário, possui uma meia vida curta, de 10 dias. Temos então o pior dos dois mundos: um processo de obtenção lento e uma janela de utilização curta.

Amostra de Actínio-225 produzida artificialmente

Desde 1990 alguns processos que procuram acelerar a transformação do Thálio-229 em Actínio-225 foram experimentados, mas seus custos são altos e o produto final é impuro. Aí que entra o bom e velho Rádio. A transformação do Rádio-226 em Actínio-225, além de ser eficiente em termos de custos, resulta em um produto de maior pureza.

Se houvesse uma fonte abundante de Rádio-226, tudo seria mais fácil. Se fosse ainda o subproduto natural de um processo que já se provou economicamente viável seria melhor ainda. A solução estava na nossa frente há anos e não é nada intuitiva: mineração de fosfato. Exatamente. O fosfato é misturado com ácido sulfúrico, para a extração úmida de ácido fosfórico (utilizado na cadeia de fertilizantes agrícolas e na indústria). Em 2020, foram produzidas 87 milhões de toneladas de ácido fosfórico. Estima-se que para cada tonelada produzida pela extração úmida, 5 toneladas de rejeito (fosfogesso) sejam originadas. Ao final do processo, esse rejeito é empilhado sobre a terra, similarmente a um aterro sanitário, com proteções para não haver contaminação do solo. Essas pilhas podem chegar a até 60 metros de altura e 300 hectares de área de superfície. Mas o mais importante é que elas contêm Rádio-226.

Pilha de fosfogesso, o rejeito das minas de fosfato, que contém Rádio-226

Sim. Essa pilha de fosfogesso acima pode ser a chave para o tratamento de câncer de próstata. É claro que ainda estamos na etapa inicial dos estudos de eficácia do Actínio-225 e da tecnologia de transformação de Rádio-226 em Actínio-225 em larga escala. Entretanto, apenas a possiblidade do rejeito de mineração, que atualmente degrada o ambiente e é de pouca utilidade, poder salvar milhares de vidas já é animadora. E não devemos parar por aí. A indústria mineradora incentiva novas pesquisas para a descoberta de usos alternativos dos componentes dos seus rejeitos, buscando minimizar os problemas de descarte, e ao mesmo tempo aumentar a rentabilidade da operação como um todo. Parafraseando Smith: “Não é da benevolência do minerador que devemos esperar tratamentos oncológicos, mas de seu próprio interesse”.

E há vários exemplos de como podemos tornar algo antes descartável em um produto útil.

Em uma das ilhas da Suécia, por exemplo, urina humana está sendo coletada, secada e transformada em pequenos pedaços, que depois viram pó. Como a urina humana contém potássio, fósforo e nitrogênio, esse pó é comprimido junto com granulados de fertilizantes, até serem utilizados por fazendeiros na produção de cevada. Da cevada para a cerveja, da cerveja para o Happy Hour da firma e o ciclo recomeça. Além de contribuir para uma economia mais circular, estima-se que há um potencial de receita de US$13,6 bilhões anuais nesse jogo de reutilização de urina como fertilizante. É claro que há alguns empecilhos, como a coleta própria desta urina, que precisa ser segregada do esgoto tradicional, mas mictórios secos são um bom passo inicial.

 

Privada com coleta especializada de urina ao lado de um pequeno lote de cevada. Crédito à Nature e MAK/Georg Mayer/EOOS NEXT.

Poderíamos seguir com mais alguns exemplos, como o reuso de cordões umbilicais no tratamento de câncer, utilização de tecidos bovinos em cirurgias cardíacas em humanos, e tantos outros.

Começamos o texto pessimistas, todavia acabaremos sendo otimistas: se o tratamento de câncer com partículas provenientes de rejeitos de mineração for possível, talvez o sonho de sermos uma civilização Tipo III não esteja tão distante assim.

“Some things are impossible. Until they aren’t”