Newsletter | Viva o SUS! Mas, afinal, o que é o SUS?
Grite Viva o SUS para a vacina funcionar
A pandemia e sua consequente vacinação trouxe atenção para algo precioso que o Brasil possui, o Sistema Único de Saúde. Mas como que o nosso país, com todas as suas dificuldades, conseguiu montar o maior sistema público de saúde do mundo?
Recentemente, conversamos com o Dr. Gonzalo Vecina, um dos maiores especialistas sanitários do Brasil. Além de um dos idealizadores do SUS, ele também foi um dos fundadores da Anvisa e o seu primeiro presidente, entre 1999 e 2003. Para Vecina, o Brasil antes do SUS tinha dois tipos de pessoas: as que tinham direito a assistência de saúde e as que tinham direito a caridade.
E era isso mesmo, não existia o conceito de acesso universal à saúde. Só eram atendidas as pessoas que tinham carteira assinada, contribuíam para a Previdência e, portanto, faziam parte do Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). As pessoas que não se encaixavam na categoria exigida tinham de buscar o sistema privado ou mesmo instituições como as Santas Casas de Misericórdia e os hospitais universitários, que realizavam atendimento gratuito. O número dessas instituições, no entanto, era muito pequeno para a demanda de um país composto em sua maioria de trabalhadores rurais e informais.
Muitos apontam que essa saúde focada nos trabalhadores surgiu de uma pressão de indústrias e grandes empresas do país para que seus funcionários não perdessem dias de trabalho e que, caso doentes, pudessem retornar ao serviço com mais agilidade. Ou seja, era uma política com viés econômico, e não pelo bem-estar do cidadão. A saúde não era considerada um direito, era um problema individual.
Novas leis, novo modelo
Entre a década de 1970 e 1990, a população que vivia em área urbana no Brasil dobrou, de 40% para 80% do total. Para além da simples questão de localidade, a mudança do perfil sociodemográfico reflete a ascensão de uma nova cultura no país. Por exemplo, em áreas rurais, as famílias eram compostas por muitos filhos, que representavam a mão de obra responsável pela aposentadoria dos pais. Nos centros urbanos, por outro lado, as famílias são mais reduzidas, o que gerou um déficit de aposentadoria e alimentou uma demanda por seguridade social.
Algumas cidades que experimentaram esse processo de expansão demográfica acelerada, como Campinas, foram pressionadas no sentido de atender as demandas populacionais, entre as quais, a demanda por um sistema de saúde mais amplo. Soma-se a essa pressão a completa falência econômica do modelo do Inamps, os inúmeros problemas relacionados a corrupção e o gatilho necessário para uma mudança radical: a nova Constituição Federal.
A lei é para todos… Mas e a saúde?
Especialistas apontam que já não há mais sistemas puros mas, via de regra, a saúde europeia se apoia em dois modelos principais: o modelo de Bismarck (Sistema de Segurança Social) e o modelo de Beveridge (Serviço Nacional de Saúde).
Criado na Alemanha em 1883, o modelo Bismarck é pautado no cuidado da saúde dos cidadãos através de organizações privadas e, para isso, tanto empregadores como trabalhadores pagam taxas direcionadas às empresas gestoras dos serviços médicos. Esses pagamentos são transferidos para “fundos”, entidades não governamentais reguladas por lei que simplesmente administram os recursos captados. Com os recursos, são contratados profissionais de saúde e equipamentos. Nesse caso, o Estado é um gestor do sistema que as empresas privadas operam.
O modelo britânico, o NHS (National Health Service) é pioneiro no modelo beveridgiano de serviço nacional de saúde, que entende a saúde como uma forma de cidadania. O sistema é baseado no acesso universal aos cuidados de saúde e em uma proposta de provisão orçamentária, controle e gerência direta dos serviços de saúde pelo Estado. Nesse modelo, o cidadão não paga diretamente a assistência. De modo geral, o modelo de Beveridge financia a saúde por meio de impostos pagos por todos os cidadãos. Outros modelos na Europa também se baseiam na ideia do NHS de fornecer cobertura integral para todos os cidadãos, como o de Portugal, criado em 1974, o da Itália, de 1978, e o da Espanha, de 1986.
O SUS foi implementado em 1988, junto à nova Constituição. Inspirado no modelo britânico, o SUS transformou a caridade em direito. Criou-se uma linha no balanço patrimonial brasileiro, contendo um ativo para a população e um passivo para o Estado, ou seja, um direito do cidadão e um dever do Estado de cumpri-lo.
O Brasil como um exemplo para o mundo?
Para alguns o conceito de que todos tem o direito a saúde é algo básico. Mas para a maioria dos países, não é assim que funciona. Mesmo no mais rico de todos, os EUA, é necessário pagar para ter acesso a um atendimento médico e a remédios. Um estudo publicado pela American Journal of Public Health aponta que, dos pedidos de falência feitos nos EUA entre 2013 e 2016, 66,5% estavam ligados a dívidas de saúde. Mesmo programas como o Obamacare, que dá um subsídio para que empresas fornecerem um plano de saúde para os seus funcionários, sofre forte resistência de muitos na sociedade.
No próprio NHS, há regras para o que é oferecido ou não oferecido. O SUS, pela Constituição brasileira, deve oferecer tudo. Mesmo quando determinado remédio não está previsto na lista, há mecanismos claros para qualquer pessoa entrar na justiça e conseguir uma decisão favorável.
É claro que SUS tem seus problemas. Equipamentos precários, falta de médicos, falta de medicamentos, as longas filas e um setor de manutenção baseado em jeitinhos prá cá e esparadrapo pra lá. Mas o SUS ainda é uma criança, ainda está em construção. Se fosse eficiente mesmo tão jovem no Brasil que conhecemos, não se chamaria SUS, se chamaria logística da Ambev.
Um dos pontos que ainda falta é investimento. Apesar de o Estado ser obrigado a dar assistência de saúde gratuita à população, o governo, proporcionalmente, investe menos na área do que outros países. De acordo com um relatório do Banco Mundial de 2017, mais da metade dos gastos totais com saúde no Brasil são financiados privadamente (individualmente e planos de saúde privados). No país, a despesa pública com saúde representa 48,2% do total, enquanto a média entre os integrantes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 73,4%. Já entre nações com condições econômicas semelhantes, o Brasil está acima apenas da média entre os países do BRICS, de 46,5%.
De qualquer forma, como vemos na imagem acima, o crescimento do SUS foi impressionante. Hoje, temos a capacidade de vacinar 70 milhões de pessoas por mês via o SUS. Cerca de 2,8 bilhões de atendimentos são feitos anualmente pelo sistema, desde serviços ambulatoriais simples até procedimentos de alta complexidade. O SUS é o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo, por exemplo.
Além de oferecer consultas, exames, internações e campanhas de vacinação, o SUS engloba o serviço de vigilância sanitária, conduzido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma agência reguladora amplamente reconhecida pela excelência do trabalho desempenhado.
A zaga da Saúde
A Anvisa foi criada na década de 1990, com a função reguladora de controle da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, no contexto da Reforma Bresser e do movimento de privatizações. À época, havia resistência para formalizar a Vigilância Sanitária enquanto agência reguladora, sob a justificativa de que ela não intervinha no domínio econômico.
O então Ministro da Saúde José Serra sonhava com a criação de um órgão como o FDA – US Food and Drug Administration no Brasil, e teve protagonismo na briga para garantir que a Anvisa fosse reconhecida como agência reguladora autônoma independente tal como é hoje. Vimos a sua força e independência ao vivo e em cores nesse último final de semana, quando agentes da Anvisa interromperam o jogo da seleção brasileira de futebol contra a seleção Argentina, mostrando que mesmo com Messi e Neymar em campo, ninguém deve ficar acima da lei.
Horas da Vida
Aqui na KPTL, o setor de saúde foi o segundo setor que mais investimos, com 16 startups investidas. Acreditamos que apoiar empresas inovadoras que trazem eficiência para o setor, é onde conseguimos gerar a maior contribuição. Mas como sempre se pode fazer mais, recentemente, o nosso CEO Renato Ramalho começou a participar do conselho da Horas da Vida. Fundada por Rubem Ariano e da qual o Dr. Gonzalo é presidente do conselho, a Horas da vida é uma instituição sem fins lucrativos que por meio de uma rede de voluntários de profissionais de saúde, promove a inclusão social e o acesso a saúde para pessoas em situação de vulnerabilidade social que geralmente são assistidas por organizações sociais do terceiro setor. Com uma rede de mais de 2 mil voluntários, só no ano passado foram quase 300 mil benefícios de saúde.
Apesar do Dr. Gonzalo acreditar que a caridade na saúde não deveria existir, no sentido de que ela deveria ser inteiramente atendida como um direito e não um favor. É a desigualdade que cria espaço para movimentos de solidariedade. Quando perguntei se ele é otimista a respeito de um futuro em que os direitos vão ser atendidos, respondeu: O pessimista, é um cara que não trabalha para dar certo; o otimista, trabalha.
O Dr. Gonzalo, com todo seu histórico e com a sua atuação no Horas da Vida, só pode ser otimista, porque senão não estaria trabalhando tanto para que dê certo. E se algo positivo saiu da pandemia, é o reconhecimento pelos cidadãos da importância de um sistema de saúde público universal como o nosso.
Viva o SUS!
“Quem mata não é a doença, é a desigualdade.”
Dr. Gonzalo Vecina