Cleantechs

É tecnologia, não é feitiçaria

Às vezes, é fácil ter a impressão de que na economia batizada como sustentável, circular, “limpinha”, tudo acontece em um passe de mágica. Enquanto nos bastidores se desenrolam processos complexos, passando a sensação de que qualquer material pode se transformar em outro, bastando adicionar “brilho” e “glamour” ao novo. Mas como diz aquele velho bordão:  “não é feitiçaria, é tecnologia”.

Se 🎶somos o que podemos ser, sonhos que podemos ter (E teremos!) 🎶, como já cantou em verso e prosa a banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, porque, afinal, de contas há a clara sensação de que essa história de “ser sustentável não basta”? Por quê?

“O mercado não era (e ainda não é) exatamente maduro ainda para a sustentabilidade, para entender o tema como a gente acredita”, afirma Alexandre Figueiró, co-fundador e CEO da Lamiecco.

Fundada há quase duas décadas, a empresa gaúcha não só faz a reciclagem de polietileno tereftalato (nome de estimação: PET), mas também o transforma em revestimentos ecológicos, que podem ser aproveitados pela indústria moveleira e pela construção civil. Essa é a Lamiecco.

Unidade da Lamiecco instalada no Estado do Rio Grande do Sul. Foto: Divulgação.

Para começar, o processo de reciclagem é complexo. Sem exagero, trabalhoso. Bastante. Porque é preciso adquirir as garrafas, separarlavarmoer transformar num flake – um floco de PET, parecido com um sucrilho na forma. Não, não é comestível.

Depois, precisa passar por etapas de secagem cristalização, além de receber aditivos. Ufa, acabou? Nope. É chegado o momento em que ela se transforma numa massa, que ao ser homogeneizada compactada, pode virar uma lâmina. Agora sim terminou, certo? Nananinanão!

Não, porque falta ainda à essa lâmina o brilho e o glamour, que virão após vários tipos de acabamento. E sim, agora pode estourar a champagne, porque depois de cerca de 11 etapas, a lâmina está pronta, prontinha. E poderá se transformar num revestimento usado em portas, paredes, móveis, molduras, rodapés e esquadrias.

Ficou curioso a respeito da relação reuso de materiais e produtividade, então, pegue a visão. A cada metro quadrado produzido, 30 garrafas PET são recicladas – a produção da empresa mensal gira em torno de 1 milhão de metros quadrados, num total de 30 milhões de garrafas. Feitiçaria? Como se vê, longe disso. É tecnologia, mesmo!

“Em vez de usar resina virgem, a gente usa uma resina que vai ficar boiando no rio. A outra vantagem é que o nosso revestimento não é só feito com material reciclado, como também é reciclável e atóxico, ao contrário do PVC, que, ao ser reciclado, libera ácido clorídrico”, conta Alexandre Figueiró, co-fundador e CEO da Lamiecco.

Ilha de Plástico em alto-mar. Cada vez mais essa é uma realidade oceano afora.

Os excelentes argumentos, porém, não foram suficientes para a empresa avançar sozinha em seus primeiros anos. Impressionantemente, não, assegura Figueiró, que passou a adotar o discurso de cumprimento dos requisitos técnicos como prioritário, usando a reciclagem de garrafas PET como “cereja do bolo”.

“Nenhuma empresa consegue sustentar uma estratégia comercial baseada na sustentabilidade. O produto tem que ser de excelente qualidade, atendendo requisitos e tendo responsabilidade técnica”, diz o executivo da Lamiecco, que pouco a pouco foi conquistando espaços no mercado.

O próximo passo, inclusive, é passar a fornecer revestimentos para carretas, motorhomes, ônibus e outros veículos de transporte, não só no Brasil como na América Latina. “E queremos em breve chegar aos mercados ibérico e norte-americano”, ressalta Figueiró.

Ok, ok, infelizmente, tem gente que não quer nem saber do impacto reduzido à natureza se o custo não for menor – mesmo sabendo que mais dia, menos dia, a conta vai chegar para todo mundo. (Toc toc: ela já está batendo à porta). Sim, a Lamiecco tem um ponto.

Afinal, está tudo aí: chuvas torrenciais, deslizamentos aos montes, seca com ar de infinito, solo ficando infértil, sol escaldante, frios congelantes, desmatamentos sequenciais, enfim, o que não falta nesse cartel é catástrofe. Não dá para os terráqueos simplesmente virarem a cara e fingir que “no pasa nada”.

Diante desse rol de condicionantes, pré-condicionantes, arestas e tarefas, houve quem fizesse desse limão uma limonada. Gostosa, eu diria. Sem açúcar, mas com gelo, por favor. Como a Akmey.

Investida pela KPTL lá em 2015, a Akmey foi fundada há quase duas décadas em Santa Catarina para abraçar uma luta inglória: a de reduzir o nada pequeno uso de água e produtos químicos pelos fabricantes daquela blusinha ou camisetinha que você se apaixonou na vitrine da loja. Fácil, não é mesmo? Só que não!

Unidade da Akmey instalada no Estado de Santa Catarina. Foto: Divulgação.

Pois é… Para deixar aquela camiseta preta básica de algodão no shape que todo mundo aí na firma gosta, é preciso aplicar uma pancada de produtos químicos no tecido. É soda cáustica, ácido acéticosequestrantelubrificantedetergente… Acabou? Not. Tem ainda água – muita água – para lavar tudo isso, etapa por etapa.

Terminou? Nope. Há ainda a secagem. Um processo amigão da conta de luz, que é executado com garbo avec elegance a temperaturas em torno de 100 graus celsius. Uma belezinha de calor e uma belezinha de megawatts/hora, e claro, uma belezinha de reais.

É nesse jogo caro, trabalhoso, complicado e cheio de manhas que a Akmey veste a camisa 10 limpinha e macia. E joga bem. Porque um de seus principais produtos tem nos compostos enzimáticos a tática perfeita na hora de preparar o tecido, chutando para o escanteio o uso de químicos – alguns ainda insistem em articular boas jogadas, diga-se -, colocando no banco de reservas uma boa quantidade de água, tão necessária à lavagem do algodão.

Ah, mas e a energia? Fica no vestiário? Não! Ela joga, mas atua de maneira mais comedida. Ali na marcação, uma vez que as reações químicas e a lavagem com água demandam menor temperatura.

Feitiçaria? Longe disso! Relembremos aquela gostosa aula de química, quando o professor do ensino médio chegava todo simpático e cravava, “hoje, vocês vão amar esse conteúdo”. Em meio a olhares cínicos, sorrisos de canto de boca, piscadelas e risos baixinhos no fundo da classe, além dos murmúrios em profusão, lá ia o professor de Química iniciar sua aulinha, sacando do bolso a palavra “enzimas”.

Enzimas, dizia ele, “são compostos que aceleram uma reação”. E todos se entreolhavam e um enorme ponto de interrogação emergia das mentes em formação. Mas sem perder a classe o mestre prosseguia: ” nosso sistema digestivo, por exemplo, tem uma série de enzimas que quebram proteínas, facilitando a absorção delas pelo corpo (e acelerando seus efeitos aqui e aí dentro). E um uníssono, “ah, então, é isso” surgia forte como a energia que se faz presente na melhor fase da vida, a adolescência.

Recordações à parte, é hora da viagem ao túnel do tempo terminar e explicar que as enzimas da Akmey tem uma meta: agir para deixar o processo de beneficiamento das roupas mais econômico.

Como? Reduzindo sem dó e tampouco piedade o gasto com água, o tempo no processo em si, a energia e o uso de produtos químicos.

Mas vem cá… Quanto? Em maravilhosos, pelo menos, 25%.

Um e-s-p-e-t-á-c-u-l-o! É mágica, só pode… Não! É a ciência, a tecnologia, tudo.

Só que não para por aí. Tem mais. Outra sacada da Akmey é o Sustendye. “Acuma?”

Calma. Sustendye é um corante nanoencapsulado que também aumenta a eficiência do processo de tingimento de roupas. É um corante do bem, se acalme.

Porque ele faz com que o processo use menos produtos químicos. E com menos química, o trabalho é feito em menor tempo e demanda menor quantidade de água.

Então, a Akmey está satisfeitíssima? Pode se dar ao luxo de investir tempo em fórmulas mirabolantes no melhor estilo feitiçaria? A resposta é não.

Aragão explica que a companhia é incessante no tocante ao contínuo desenvolvimento de tecnologia. Em maio de 2024 mesmo, teve até patente nova (a do Sustendye) sendo aprovada para a empresa aqui no Brasil, veja você. E olha que essa patente foi depositada faz pouco, hehehe, em 2018. Pois então.

 

Ou seja, my friend, tecnologia não é algo que se constrói do dia para a noite. Definitivamente, não o é.

Não à toa, as ideias incríveis de Lamiecco e de Akmey já se testam há muito tempo no mercado, com trabalho duro, proximidade aos clientes e readequação dos modelos sempre que necessário.

É como diz o velho ditado: No creo en las brujas, pero que las hay, las hay. Usando iphone, claro, porque no fim das contas, ninguém abre mão de uma boa tecnologia. Nem las brujas!

“We are what we repeatedly do”

Aristóteles

3 perguntas para…

Aline Soterroni

Cientista ambiental e Pesquisadora Associada da Universidade de Oxford, envolvida nas Iniciativas de Soluções Baseadas na Natureza e Oxford Net Zero.

1) A vasta maioria dos países já anunciou compromissos e metas para reduzir e zerar as emissões de dióxido de carbono na atmosfera. Como cada país tem uma estrutura econômica, cada lugar tem um desafio diferente. Pensando nisso, como é esse desafio para o Brasil – e em que áreas podemos obter avanços mais rápidos?

Quase ¾ das emissões brasileiras estão relacionadas à produção de alimentos ou aos setores de mudanças do uso da terra e agricultura. O desmatamento ou conversão da vegetação nativa ainda é a principal fonte de emissões nacionais. Dessa forma, a proteção da vegetação nativa (ou o fim do desmatamento) é o que pode trazer os avanços mais rápidos no sentido de redução de emissões. Mas só o fim do desmatamento não garante o cumprimento da meta net zero brasileira. O País precisa avançar nas agendas de (i) restauração dos ecossistemas em larga escala, (ii) aumento de eficiência do setor energético, (iii) aumento da produção de renováveis, (iv) práticas agrícolas mais sustentáveis e (v) na redução da queima de combustíveis fósseis. A ciência de modelagem de cenários integrada mostra que quase 80% do potencial de redução de emissões no Brasil rumo ao net zero pode ser alcançado com soluções baseadas na natureza, sobretudo com o fim do desmatamento e a restauração da vegetação nativa em larga escala. E isso é uma vantagem comparativa única para o Brasil porque além de reduzir emissões, as soluções baseadas na natureza oferecem múltiplos benefícios para as pessoas como adaptação e aumento da resiliência dos ecossistemas e das cidades aos impactos das mudanças climáticas (como eventos climáticos extremos). Além disso, atualmente, o custo das soluções baseadas na natureza é uma fração do custo de tecnologias de emissões negativas como captura e armazenamento de carbono (CCS, no acrônimo em inglês).

2) Há avanços que podem ser obtidos em mudanças de postura e conscientização, como na redução do desmatamento. Outros, porém, devem vir de mudanças tecnológicas e soluções baseadas na natureza. Qual é o papel das indústrias de tecnologia e inovação nesse sentido?

Sem dúvida, ações de combate ao desmatamento, tanto ilegal quanto legal, deveriam ser prioridade. A ciência já mostrou que o Brasil não precisa desmatar nenhum hectare de terra para continuar produzindo alimentos no futuro, sobretudo porque a agricultura brasileira é altamente dependente dos benefícios que os ecossistemas fornecem como regulação do clima e do regime de chuvas, polinização, ciclagem de nutrientes, entre outros. Apesar da vontade política ser fundamental para combater o desmatamento, empresas de tecnologia e inovação poderiam investir em soluções para avançarmos na rastreabilidade das cadeias de suprimentos de commodities como carne bovina, soja e madeira. Essas tecnologias ajudariam a produzir alimentos de forma sustentável, aumentar a produtividade no campo, reduzir desperdícios, e auxiliar os consumidores a fazer escolhas mais conscientes.

3) Além de pesquisadora em Oxford, você também trabalha atualmente com o ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação pensando políticas e inputs para o país nesse setor. De que maneiras o Estado pode atuar para não só dar o exemplo, mas criar incentivos em para pessoas e empresas nesse compromisso net zero?

Atualmente, eu participo do desenvolvimento do Simulador Nacional de Políticas Setoriais e Emissões (SINAPSE MCTI) que projeta emissões de diferentes cenários de políticas públicas. Esse simulador tem o potencial de subsidiar a tomada de decisão no que tange a formulação de políticas prioritárias para reduzir emissões, incluindo a implementação da NDC. É papel do governo definir planos setoriais, implementar ações prioritárias e fiscalizar o cumprimento das políticas nacionais no sentido de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Mas para isso é preciso vontade política, planejamento estratégico de longo prazo, diálogo com a ciência, sociedade civil e setor privado, cooperação internacional, e alinhamento dentro do próprio governo. Investimentos na exploração de combustíveis fósseis e nas atividades que degradam os ecossistemas vão na contramão do combate às mudanças climáticas.