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O contexto

Em 1907, Ernest Shackleton chefiou a primeira expedição que efetivamente declarou ter como objetivo atingir o Pólo Sul. Com mais três companheiros, Shackleton chegou a 156 quilômetros de seu destino, mas se viu obrigado a voltar devido à escassez de alimentos. A viagem de volta foi uma corrida desesperada contra a morte. Mas o grupo finalmente conseguiu, e Shackleton voltou à Inglaterra transformado em herói do Império. Era tratado como uma celebridade em todos os lugares aonde ia, recebeu do rei o título de cavaleiro e foi condecorado por todos os países mais importantes do mundo.

Enquanto isso, em 1909, uma expedição americana comandada por Robert E. Peary se tornou a primeira a chegar no Pólo Norte. Em 1912, o britânico Robert Scott travou uma corrida rumo ao Pólo Sul com o norueguês Roald Amundsen – e perdeu por pouco mais de um mês.

Com essas conquistas já tomadas, Shackleton então se propôs a ser o primeiro a cruzar o continente antártico por terra, de oeste para leste. A prova da dificuldade desse intento é o fato de que, depois de Shackleton, a travessia do continente só voltou a ser tentada 43 anos depois – em 1957.

Os preparativos

Ele então passou quase dois anos inteiros reunindo apoio financeiro. Como era costumeiro, Shackleton também hipotecou a expedição, num certo sentido, vendendo antecipadamente os direitos sobre quaisquer bens comerciais que a expedição porventura viesse a produzir, inclusive livros, filmes e fotografias.

Em relação à escolha da tripulação, tem-se a impressão de que os métodos de Shackleton foram quase caprichosos. Sempre que gostava da aparência de um homem, ele era aceito. Se não gostava, a questão estava fechada. E as decisões eram tomadas com a rapidez de um raio. Não há qualquer registro de alguma entrevista entre Shackleton e um candidato a membro da expedição que tenha durado mais de cinco minutos.

A embarcação, chamada de Endurance, era o barco de madeira mais forte já construído na Noruega, e provavelmente em qualquer país do mundo, com a possível exceção do Fram, o navio usado por Amundsen.

A expedição

Mas ninguém poderia prever a sequência desastrosa de acontecimentos que viriam. Quando estavam se aproximando da Antártica, o barco ficou atolado em meio ao gelo. Depois de muito tentarem libertar o navio, tiveram que aceitar os fatos: teriam que passar o inverno a bordo do navio encalhado. Em todo o mundo, não há desolação mais completa que a da noite polar. É uma volta à Idade do Gelo – sem calor, sem vida, sem movimento. Só quem já passou por isso pode avaliar plenamente o que significa ficar sem o
sol dias e semanas a fio. Poucos homens desacostumados são capazes de combater os efeitos dessa provação, e ela já levou muitas pessoas à loucura.

Entretanto, os homens a bordo do Endurance mantiveram uma rotina e começaram a se conhecer muito bem. E, com poucas exceções, aprenderam também a gostar uns dos outros. Criaram uma série de ocasiões sociais regulares que incluíam música, jogos e até festa à fantasia. Porém, após 9 meses nessa situação, tudo mudou. O gelo que cercava o barco começou a pressionar o casco, deixando o navio danificado. A ordem de abandonar o navio foi dada. A temperatura era de 22,5 graus abaixo de zero.

Poucos homens já suportaram a responsabilidade que Shackleton tinha naquele momento. Embora certamente tivesse consciência de que sua situação era desesperadora, não poderia ter imaginado àquela altura as provações físicas e emocionais que seus homens teriam que suportar nos meses seguintes. Estavam isolados em cima de um bloco de gelo de dois metros de espessura a mais de 1900 quilômetros de distância da civilização mais próxima, sem nenhuma forma de comunicação.

Nas semanas seguintes, passaram a dormir amontoados em barracas com seus sacos de dormir diretamente em cima do gelo. Tinham um estoque de comida para 3 meses, que conseguiam complementar caçando focas e pinguins. Shackleton estava preocupado. De todos os inimigos – o frio, o gelo, o mar –, o que mais temia era a perda do
moral. Mas o grupo mantinha o otimismo, com uma convicção profunda de que a situação em que se encontravam era apenas temporária.

Enquanto isso, a banquisa de gelo se movia, mudando de direção de acordo com os ventos. Eles acreditavam que essa deriva era a forma mais segura e eficiente de se locomover em direção a terra firme. Porém, com o verão chegando, ela começou a se derreter a ponto de virar um pequeno triângulo, com cada lado medindo cerca de 100 metros. Assim, tiveram que ir para o mar nos barcos salva vidas que tinham.

Os barcos tinham 6,6 metros de comprimento e 1,9 metros de largura, com mastros grossos nos quais se poderia prender uma vela; mas eram basicamente barcos a

remo que não foram desenhados para velejar. Era com isso que eles enfrentariam o estreito de Bransfield, onde as condições climáticas são invariavelmente péssimas. Alguns relatórios dizem que o céu só aparece entre as nuvens dez por cento do tempo. As nevascas são intensas e ventos fortes são comuns. Fazia tanto frio que a água do mar ficava congelada quase no momento em que caía sobre eles. O destino precisava ser constantemente alterado de acordo com os ventos. Depois de muito sufoco, conseguiram chegar na Ilha Elephant. Pela primeira vez, em 497 dias, estavam em terra firme. Terra sólida, inafundável, irremovível.

Shackleton deixou os homens dormirem até às nove e meia da manhã seguinte. Mas no desjejum começou a correr um boato desagradável, e quando acabaram de comer Shackleton confirmou, deixando todos chocados; era verdade, iriam sair de lá. Perceberam, como disse alguém, que a ilha Elephant “era um falso refúgio”. O lugar onde estavam, com a mudança da maré, ficaria inabitável. Conseguiram mudar para outra parte da ilha, mas ainda tinham um grande problema: ninguém sabia que estavam lá. Então Shackleton tomou a decisão de que, junto com 5 homens, iria pegar um dos barcos e buscar ajuda. O que ele se propunha a fazer era loucura: navegar naquele “botinho” na passagem de Drake, o trecho de oceano mais temido do planeta. Com ondas que chegam a 30 metros e rajadas de ventos de até 300 quilômetros por hora, é um desafio de navegação ainda hoje para os barcos mais modernos.

O destino era a ilha da Geórgia do Sul, onde havia uma Estação Baleeira. Além de duas ou três ilhas pequenas, o oceano Atlântico, a leste da Geórgia do Sul, era vazio
até a África do Sul, a quase 5.000 quilômetros de distância. Se, devido a um erro de cálculo ou ventos fortes do sul, passassem ao largo da ilha, não haveria uma segunda oportunidade. A ilha ficaria contra o vento e nunca conseguiriam voltar em sua direção. Não podiam errar.

O mar era um tipo diferente de inimigo. Ao contrário da terra, onde a coragem e a simples vontade de resistir são muitas vezes decisivas para a sobrevivência, a luta contra o mar é um ato de combate físico, e não há como fugir. É uma batalha que se trava contra um inimigo incansável, em que o homem nunca vence; o máximo que pode ambicionar é simplesmente não sair derrotado. Incrivelmente, depois de 13 dias absorvendo todos os golpes da passagem de Drake, chegaram à Geórgia do Sul.

Chegando na ilha, os fortes ventos e ondas quase os levaram para uma arrebentação violenta contra as paredes rochosas da ilha. Por alguns momentos, Shackleton estava convencido de que morreriam. Eventualmente conseguiram desembarcar.

Agora só faltava cruzar a ilha, um trajeto de 45 quilômetros que nunca tinha sido feito por ser considerado impossível. Era uma combinação de picos de até 3 mil metros e geleiras. De equipamento, eles tinham exatamente um enxó de carpinteiro e 15 metros de corda. Nesse momento, Shackleton resolveu tomar um risco: não levariam a barraca e nem sacos de dormir. Ou seja, iriam para o tudo ou nada. A travessia da Geórgia do Sul só foi realizada novamente quase 40 anos depois, pelo britânico Duncan Carse. Para fazê-lá há dois caminhos, com dificuldades que “mal podem ser comparadas”. Shackleton, por não ter um mapa da ilha, acabou fazendo o caminho mais difícil. Carse, mesmo com equipamentos muito mais modernos e em ótima forma física, conseguiu fazer apenas o mais fácil.

Shackleton então chegou na Estação Baleeira. Das honrarias que se seguiram, e foram muitas, possivelmente nenhuma excedeu a primeira noite na estação, quando os navegadores lá presentes avançaram um a um, apertando em silêncio as mãos da tripulação da Endurance. Menos de 72 horas depois de chegar à civilização, Shackleton embarcou em um navio novamente para resgatar o resto da sua tripulação na ilha Elephant. Foi o início de uma série terrivelmente frustrante de tentativas de resgate, que durariam mais de três meses, ao longo dos quais o banco de gelo que cercava a ilha Elephant parecia determinado a não permitir que nenhum navio chegasse para recolher os náufragos. Mas eventualmente ele conseguiu chegar e resgatou os seus homens. Ninguém perdeu a vida na expedição.

Mais do que uma surpresa no final, a leitura do livro “A incrível viagem de Shackleton” (1959, Alfred Lansing) é rica e recomendada pelos detalhes que traz. Apesar de antigo, Shackleton segue como um empreendedor serial que deveria inspirar a todos. Ele não desistia nunca. Mesmo depois da saga, voltou a liderar expedições para a Antártica. Era um tomador de risco, mas sempre calculista, sempre disposto a mudar o plano. Sua maior preocupação era sempre com seus funcionários. E sua capacidade de manter a moral alta nos momentos mais difíceis foi essencial para a sobrevivência. Se eles, passando anos nessas situações à beira da morte, continuavam cantando e se mantendo otimistas, por que vemos empresas se transformarem após um ou dois trimestres ruins? Ele também não tinha medo dos “cenários competitivos” mais adversos. No começo da expedição, até estava capitalizado, com o seu baita barco para enfrentar esse competidor chamado clima. Mas o caixa da empresa foi secando até sobrar apenas três pequenos botes. E no final de tudo, quando já estava próximo do seu “exit”, a história dessa expedição mostra que é preciso permanecer atento até o final, pois, mesmo quando se está muito perto, sempre há chance das ondas arrebentarem seu barquinho nas rochas.

No livro Hard Things about Hard Things, Ben Horowitz, hoje um dos mais respeitados Venture Capitalists, descreve a diferença entre CEOs de tempo de paz e CEOs de tempo de guerra. São duas personas completamente diferentes. Sir Ernest Shackleton seria um exemplo de belíssimo CEO de tempo de guerra. Como ficou famoso o ditado: para a liderança científica, o melhor é Scott; para viajar depressa e com eficiência, Amundsen; mas quando você está numa situação perdida, quando parece que não há mais saída, peça a Deus que seu chefe seja Shackleton.

 

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